terça-feira, 26 de junho de 2012

girassóis

Anoitecia, eu estava no jardim. Passou um vizinho e ficou me olhando,pálido demais até para o anoitecer. Tanto que cheguei a me virar paratrás, quem sabe alguma coisa além de mim no jardim. Mas havia apenas osbrincos-de-princesa, a enredadeira subindo tenta pelos cordões, rosascor-de-rosa, gladíolos desgrenhados. Eu disse oi, ele ficou mais pálido.Perguntei que-que foi, e ele enfim suspirou: "Me disseram no Bonfim quevocê morreu na Quinta-feira." Eu disse ou pensei em dizer ou de talforma deveria ter dito que foi como se dissesse: "É verdade, morri sim.Isso que você está vendo é uma aparição, voltei porque não consigo melibertar do jardim, vou ficar aqui vagando feito Egum até desabrocharaquela rosa amarela plantada no dia de Oxum. Quando passar por lá noBonfim diz que sim, que morri mesmo,e já faz tempo, lá por agosto do anopassado. Aproveita e avisa o pessoal que é ótimo aqui do outro lado:enfim um lugar sem baixo-astral."
Acho que ele foi embora, ainda mais pálido. Ou eu fui, não importa.Mudando de assunto sem mudar propriamente, tenho aprendido muito com ojardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecemflores simples, fáceis, até um pouco brutas.Pois não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagarenfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventosdestruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá está o botãozinho todocatita,parece que já vai abrir.
Mas leva tempo, ele também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava, e nada.Viajei por quase um mês no verão, quando voltei, a casa tinha sidopintada, muro inclusive, e vários girassóis estavam quebrados. Fiqueiuma fera. Gritei com o pintor: "Mas o senhor não sabe que as plantassentem dor que nem a gente?" O homem ficou me olhando tão pálido quantoaquele vizinho.Não, ele não sabe, entendi. E fui cuidar do que restava, que é sempre oque se deve fazer.
Porque tem outra coisa: girassol quando abre flor, geralmente despenca.O talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então,como senão suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra,exaustoda própria criação esplêndida. Pois conheço poucas coisas maisesplêndidas, o adjetivo é esse, do que um girassol aberto.
Alguns amarrei com cordões em estacas, mas havia um tão quebrado que nemdei muita atenção, parecia não valer a pena. Só apoiei-o numaespada-de-são-jorge com jeito, e entreguei a Deus. Pois no dia seguinte,lá estava ele todo meio empinado de novo, tortíssimo, mas dispensando oapoio da espada. Foi crescendo assim precário, feinho, fragilíssimo.Quando parecia quase bom, cráu! Veio uma chuva medonha e deitou-se porterra. Pela manhã estava todo enlameado, mas firme. Aí me veio a idéia:cortei-o com cuidado e coloquei-o aos pés do Buda chinês de mãosquebradas que herdei de Vicente Pereira. Estava tão mal que o talopendia cheio dos ângulos das fraturas, a flor ficava assim meio decabeça baixa e de costas para o Buda.Não havia como endireitá-lo.
Na manhã seguinte, juro, ele havia feito um giro completo sobre opróprio eixo e estava com a corola toda aberta, iluminada, voltadaexatamente para o sorriso do Buda. Os dois pareciam sorrir um para ooutro.Um com o talo torto, outro com as mãos quebradas. Durou pouco,girassol dura pouco, uns três dias. Então peguei e joguei-o pétala porpétala, depois o talo e a corola entre as alamandas da sacada, para quecaíssem no canteiro lá embaixo e voltassem a ser pó, húmus misturado àterra, depois não sei ao certo, voltasse à tona fazendo parte de umarosa, palma-de-santa-rita, lírio ou azaléia, vai saber que tramas armamas raízes lá embaixo no escuro, em segredo.
Ah, pede-se não enviar flores. Pois como eu ia dizendo, depois quecomecei a cuidar do jardim aprendi tanta coisa, uma delas é que não sedeve decretar a morte de um girassol antes do tempo, compreendeu?Algumas pessoas acho que nunca. Mas não é para essas que escrevo. "


A morte dos girassóis- caio fernando abreu 

gosto tanto de girassóis planta inspirada pra viver ! :)
e gosto desse texto... 


esses dias tem passado tão  rápido, tudo freneticamente acontecendo (ou não) que quero que sentir mais devagar mais aproveitado com coisas boas. ou pelo menos ver o lado bom de tudo!